Jornal Ação 262

MESTRES POR ACASO Hayton Rocha* Jurandir nunca foi de rascunhar. Apenas franzia a testa, punha o pa- pel na máquina e preparava cartas, memorandos e fichas cadastrais ir- retocáveis. Para mim, aquilo expli- cava a correspondência regular que ele mantinha com um certo Drum- mond, como se fosse normal ser íntimo do itabirano autor de Poema de Sete Faces, mesmo vivendo a mi- lhares de quilômetros. Seis anos mais novo que eu, o filho de Jurandir (Jurandir Neto) nascera num 16 de setembro, mesma data em que veio ao mundo Rita de Cás- sia, herdeira de Maerbal. Vez por outra os pais lembravam essa coin- cidência cósmica que apertou ainda mais os cadarços da amizade que lhes unia. Maerbal, por sinal, perito de balan- ços, conciliava o amor pelo ofício bancário com outra paixão: trans- mitir o que sabia a estudantes, como eu, de contabilidade, economia e administração de empresas. Gosta- va também de velejar e, obcecado por música, até agora nutre a ma- nia de adquirir relógios de parede só pelo deleite de ouvir a disputa sono- ra da marcação do tempo. Ayres completava o trio de mestres, todos eles, hoje, na casa dos 80. Não havia remédio que curasse a enxa- queca que lhe azedava o semblante quase sempre sereno. Amante de livros assim como de telas, pincéis e tintas, era investigador de cadas- tro, tal como Jurandir. Dele tam- bém se dizia, não sem traços da boa inveja: um sujeito insaciável, bem-dotado, inclusive intelectual- mente. Entre Jurandir, Maerbal e Ayres havia em comum a louvável ca- pacidade de trabalhar pesado sem sufocar a leveza da relação. E no setor de cadastro do Banco do Brasil daquela Maceió do começo da década de 1980, os três mestres acabariam protagonistas de um caso memorável. Por curto período, Ayres fora de- signado para substituir interina- mente o chefe do setor e, de brin- cadeira, solenizou: “Prestem bem atenção... A partir de amanhã eu exijo mais respeito e seriedade. Aproveitem a chance de ser lidera- dos por um ‘superchefe’!” No dia seguinte, Maerbal trouxe sua máquina fotográfica, a pre- texto de registrar a presença de Ayres na cadeira do titular ausen- te. O “superchefe”, então, ajeitou os escassos fios de cabelos entre as orelhas e sorriu para a câmera. De molecagem, porém, Maerbal clicou-o do pescoço para baixo, cortando-lhe a cabeça. Revelada a fotografia dois dias de- pois – não parece, mas funcionava assim naquele tempo –, o ambien- te se encheu de graça e luz. E o dia ganharia ares poéticos quando Maerbal, numa alusão à enxaqueca de Ayres, provocou Jurandir ofere- cendo-lhe o mote: “A cabeça a dor levou”. Pouco me custou – a não ser man- ter olhos e ouvidos limpos – apren- der por acaso com aqueles mestres que, em qualquer parte do mundo, quando a gente escolhe um trabalho de que gosta, não tem que trabalhar nem um dia na vida. Mundo, vasto mundo, tão vasto quanto o meu coração. Eu não devia contar, mas essa lua sobre a praia de Pajuçara, esse Cabernet Sauvignon, ainda me botam comovido pra danado. “Mareba, Custou, mas como custou! Quantos anos se passaram E, ai de nós, não voltaram... Custou, mas como custou! Rita de Cássia cresceu E um noivado apareceu, Com ameaças de vovô... Custou, mas como custou! Te lembras, eu bem me lembro Dos meados de setembro: A dupla ao mundo chegou Para curso dar ao vale De lágrimas que é a vida. Que esta lhes seja florida E que outra boca não fale. Só a que o Bem desejou. Custou, mas como custou! Mas o papel chega ao fim, E o que se passou, passou... Agora é cuidar, pois sim, Desse fato inusitado: O “super” guilhotinado... Credo, cruz, Ave-Maria! Parece feitiçaria! Mas o perigo ficou Se a de cima se mandou. A outra – raro exemplar – Essa a dor não quis levar!” Sentado à mesa, Jurandir dobrou ao meio uma folha de papel ofício, cobriu o rosto com a mão esquerda espalmada abaixo do nariz e, a lápis grafite, sem borracha ou rascunho, em minutos produziu com impecá- vel caligrafia: (*) é funcionário aposentado residente em Maceió/AL.

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